domingo, 15 de julho de 2012

O monstro da sociedade


Frankenstein - Interpretado por Boris Karloff
uma das mais famosas adaptações do romance, em 1931 

”Já tive esperanças de encontrar seres que, perdoando minha aparência, poderiam amar-me pelas qualidades que eu tinha dentro de mim.” 

Frase dita por uma personagem a quem muitos conhecem (nem que seja por meio dos filmes da sessão da tarde) e extraída por mim do clássico de Mary Shalley, a obra precursora da literatura de ficção científica, Frankenstein – Para tudo! Frankenstein não é o nome do monstro, mas do seu criador, Vitor Frankenstein. Caso você seja um dos que faz essa confusão. O monstro, que já foi representado de diversas formas no cinema, ora como um simples assassino sem capacidade de reflexão, ora como uma criatura trágica e extremamente articulada (a mais próxima do livro), na verdade, não tem nome.

Frankenstein é um dos livros mais adaptados para película e frames da história do cinema, porém, em muitas delas foi tratado com superficialidade, por meio de produções toscas que só criaram preconceitos quanto à obra literária. Pois, se concentraram apenas no aspecto assustador – na feiura do monstro - e ficcional da estória de Shelley, transformando-a em algo irrisório e até infantil (se souber de algum realmente fiel ao livro, por-favor, me indique). Entretanto, uma obra de literatura para ser considerada “um clássico” – como é o caso desta, precisa de muito mais que “sustinhos” e “caras feias” (e de vampiros que reluzem ao sol, é claro) foi esse pensamento que me levou a ler Frankenstein.

A estrutura deste romance é composta por três narrativas em primeira pessoa, do capitão que encontra Frankenstein à deriva, de Vitor Frankenstein e do monstro, o que confere à trama um ritmo que impulsiona à leitura, você quer continuar lendo, quer chegar ao final da estória sem ser interrompido – quase uma fissura! Além disso, esse formato coloca o leitor em cheque, faz com que ele enxergue ambos os lados da moeda, do criador e da criatura. Põe-no em dúvida sobre quem é o vilão e quem é o mocinho do enredo. Às vezes, sente-se pena de Frankenstein, por todos os flagelos que vive, em outro momento, o odiamos, e nos compadecemos pelo monstro, pela vida errática e solitária a qual foi lançado. Enquanto isso, o capitão representa o próprio leitor na estória – sou eu quem está ali, ouvindo tudo aquilo, querendo exterminar o monstro, desejando esbofetear o Criador e chama-lo de “idiota!”.

Logo de início, a autora nos mostra a fragilidade de Frankenstein, exibe á condição psicológica ao qual ele chegou, para mais tarde nos contar o que o levou aquele estado desesperador. Ela o humaniza ao ponto de fazer com que o leitor simpatize por ele e defina seu caráter positivamente, por intermédio do Capitão Walton e de sua descrição: “Nunca havia visto uma criatura tão interessante: seus olhos tinham uma expressão selvagem, quando não de loucura; no entanto havia momentos em que, se alguém lhe fazia alguma gentileza, toda a sua expressão se iluminava com um raio de benevolência e doçura inigualáveis.” em outro trecho “Deve ter sido uma nobre criatura em dias melhores, já que, mesmo agora, na desgraça, é tão gentil e amigável.”

Até que você conhece o relato do monstro, cuja ausência de nome reflete sua falta de identidade, a impossibilidade de ser reconhecido como alguém. A criatura e o que ela representa me remete ao que defendia o filosofo Rousseau – que por sinal nasceu em Genebra, cidade natal de Frankenstein e onde a autora criou seu romance, de que o ser humano é essencialmente bom, mas é corrompido pelo meio e as circunstâncias nas quais vive.

Na alegoria de Shelley, o monstro nasce ingênuo, ignorante a respeito de tudo. Tal qual uma criança, vai descobrindo aos poucos o que são as coisas e as pessoas (uma coisa, se é que você me entende). Ele se reconhece como individuo a partir do outro, é ao olhar para as pessoas e ao vivenciar a reação delas ao vê-lo – ficavam amedrontadas, fugiam ou atacavam-no, que a criatura descobre que é diferente e que, por isso, não é aceito.

Contudo, ele alimenta a esperança de que, se puder mostrar às pessoas suas qualidades – apesar de sua cara horrorosa, elas o amaram - Coitado! Desconhecia o preconceito e a discriminação humana, nossa incrível habilidade de amar o belo e o rico em detrimento de um bom caráter. Certamente ele não foi aceito e isso, no livro, determina os fatos que se seguem. Ele é uma vítima das circunstâncias, alguém que nasceu bom e tornou-se mau por tudo o que sofreu. Um subproduto da própria humanidade. Como muitos dos jovens brasileiros que se entregam aos vícios e a criminalidade e que, ainda, são tratados como problema individual e não social. “Serei sempre considerado o único criminoso, o único culpado, enquanto todos os que me conheceram cometeram injustiças para comigo?” diz o monstro.

Originalmente Mary Shelley deu um subtítulo ao livro, “Prometeu sem correntes”. Na mitologia grega, Prometeu criou a humanidade, a quem deu o poder de pensar e raciocinar. Enganou Zeus, roubou o fogo do Olimpo e deu-o aos seres humanos, para que esses sobrepujassem os outros animais. Por essa razão, foi condenado a permanecer preso por correntes junto ao alto do monte Cáucaso, durante 30 mil anos, durante os quais ele seria diariamente bicado por uma águia, a qual lhe destruiria o fígado. Como Prometeu era imortal, seu órgão se regenerava constantemente, e o ciclo destrutivo se reiniciava a cada dia. Após ser liberto por Hércules e substituído por outro ser imortal, o Minotauro, conforme regra de Zeus, esse lhe permitiu se tornar mortal e perecer serenamente. Um resumo metafórico da estória de Vitor Frankenstein.

Dessa forma, a estória criada por Shelley é uma daquelas obras que lhe confunde mais do que esclarece. É uma estória que nos acrescenta mais do que nos toma, que nos deixa contemplativos após a leitura, nos estimulando a refletir sobre as conjunturas sociais, sobre os métodos e dogmas humanos, sobre nós. Tudo isso, sob o pretexto do entretenimento. Uma obra completa, eu diria.

Mary Shelley. Biblioteca Nacional, Madrid
Mary Wollstonecraft Shelley (Londres, 30 de agosto de 1797 -— Londres, 1 de fevereiro de 1851), mais conhecida por Mary Shelley foi uma escritora britânica, filha do filósofo William Godwin e da pedagoga e escritora Mary Wollstonecraft. Casou-se com o poeta Percy Bysshe Shelley em 1816. Escritora de contos, dramaturga, ensaísta, biógrafa e escritora de literatura de viagens, mais conhecida por sua novela gótica Frankenstein (1818). (Fonte)


Saiba mais sobre a autora AQUI

5 comentários:

  1. Interessante análise!
    Frankenstein era uma vítima da sociedade, quantos dele tomamos conhecimento aqui do lado de fora da ficção? Milhares. E apesar de saber que a sociedade "molda" as pessoas, acho uma desculpa muito confortável para justificar os atos de gente que sofreu e depois volta pra se "vingar". Acredito sim que isso aconteça, mas acho a atitude muito mais covarde do que aquele julgou, que segregou por qualquer motivo.

    Gostei muito do texto. Nos permite muitas análises a partir dele.

    Beijos

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  2. A gente acabou acostumando com essa imagem aí, dos parafusos no pescoço e costuras, mas a autora dá a entender que o monstro era completamente "deformado" e assustador.

    Morri de dó do "monstro", principalmente naquela parte em que ele encontra o homem cego. Tava torcendo para que ele fosse reconhecido como pessoa, mas a aparência é sempre o que conta primeiro. E no fim ele acabou se tornando o que todos esperavam dele.

    :~

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  3. Carol,acho muito cômodo tratarmos pessoas tal qual pedras no sapato, é só jogá-la fora e está resolvido o problema. No livro, Frankenstein foge (abandona) sua criatura no mundo, sem fazer qualquer tipo de ponderação sobre as possíveis consequências disso para as demais pessoas e para a criatura.Penso que, enquanto não encararmos determinadas situações como sociais, como problema do outro e não meu, nada jamais mudará.

    Lu, também morri de pena do monstro. =(

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  4. ótima resenha, parabéns.
    Ter medo do desconhecido é normal, nós enquanto animais temos nossos instintos inatos e ao longo da socialização vamos adquirindo outros instintos, além claro do conhecimento, pena que dentre esses, poucos são os nobres. Achar algo feio é justo, discriminar é uma opção. Julgar faz parte, condenar também é outra opção. Acredito que todos somos vitimas e culpados, por isso precisamos cada dia mais aprimorar o que deve ser aprimorado, e entre isso está o fato de aceitar o próximo, lhe dá perspectivas, momentos e escolhas, para assim ter como avaliar de fato.

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  5. Eis uma questão complicada de se resolver: as pessoas são puras adaptações do meio em que estão inseridas e, por isso, podem ter no meio a desculpa pelos seus erros ou de fato o meio tem sua culpabilidade comprovada pelos erros cometidos por um de seus 'filhos'?

    Sei lá, acho que é uma das respostas que não teremos tão cedo.

    Mas se tem uma coisa que eu tiro de lição é que, independente de quem seja ou do que tenha feito, nenhum de nós tem desculpa para tratar alguém mal. Seres humanos são e sempre serão passíveis de erros mas também de acertos - e consertos. E outra, a gente nunca saberá o quanto pode influenciar a vida de alguém. Sendo pouco ou muito, que seja positivamente.


    No mais, tenho que ler esse livro :)

    P.S.: Ótimo texto, Lane!

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